terça-feira, 17 de setembro de 2013

A emancipação das mulheres em tempos de crise mundial (II)



Por Andrea D’atri e Laura Liff

No primeiro número de Ideas de Izquierda assinalamos que o neoliberalismo reconfigurou a situação das mulheres em escala mundial: novos direitos vieram acompanhados de maiores prejuízos, junto à feminização da pobreza e da força de trabalho precarizada. Hoje, quando assistimos à emergência de um novo período de crise econômica, social e política, como fazer com que a “ampliação de direitos” conquistada não cristalize como estratégia última de integração, senão que se transforme em ponto de apoio para uma luta radical pela emancipação das mais amplas massas femininas?
A italiana Carla Lonzi e o coletivo Rivolta Femminile denunciaram, nos anos ’70, que “a igualdade é uma tentativa ideológica para subjugar à mulher a níveis mais elevados (...) Para a mulher, liberar-se não quer dizer aceitar idêntica vida à do homem, que não é possível viver, mas expressar seu sentido da existência”(1). O feminismo indicativo que emerge na chamada segunda onda, com a radicalização do fim dos anos ’60 e princípio dos ’70, com sua política igualitarista – em suas variadas alas que abarcaram desde tendências liberais até tendências anticapitalistas e socialistas -, era criticado por propor a assimilação a uma ordem social e simbólica distinta, partindo do pensamento da diferença sexual e da materialidade da condição feminina.
A questão de fundo desta controversa era a incipiente incorporação da agenda feminista na política pública dos Estados, dos governos e dos organismos financeiros internacionais. Obtendo reconhecimento a troco de integração, o feminismo havia passado de questionar as bases do sistema capitalista a legitimar a democracia burguesa como o único regime no que se pode lograr, paulatinamente, maior equidade de gênero, através de algumas reformas parciais que não questionem seus fundamentos. Mas o feminismo da diferença terminou reconceptualizando o gênero, reduzindo-o a uma categoria essencialista: postulava que a feminidade era portadora de determinados valores, inferiorizados no discurso hegemônico masculino que se pretende universal. Este novo feminismo, que surgia – em certa medida – como uma reação contra a assimilação ao sistema do feminismo da igualdade, desestimulou a disputa política, recorrendo-se à criação de uma contracultura baseada em novo valores, surgidos da diferença sexual. E junto com o rechaço ao feminismo igualitarista, terminou impugnando o projeto de uma sociedade igualitária, liberada da exploração e da opressão.
Enquanto avança a restauração conservadora, nem a integração à democracia capitalista do feminismo igualitarista, nem a resistente contracultura do feminismo da diferença puderam evitar que se seguisse reproduzindo, e aumentando a escalas globais impensadas, a violência e a opressão de milhões de mulheres em todo o mundo.
Tempos depois, mulheres lésbicas, mulheres negras, mulheres dos países do chamado “Terceiro Mundo”, questionaram esta “celebração” dos valores femininos, que inviabilizava as diferenças existentes entre as próprias mulheres, estabelecidas como hierarquias opressivas. Denunciaram que estes supostos valores femininos não eram mais que a forma universalista, e, portanto, normativa, em que se expressava a idiossincrasia particular das mulheres brancas, anglo-saxônicas, heterossexuais, de classe média e de países centrais. A diferença sexual se desfez, então, em múltiplas e cruzadas diferenças entre as mulheres, abrindo caminho a variadas identidades nómades e a um sujeito político fragmentário.
Logo, o pós-feminismo foi mais além. De tantas e singulares identidades, derivou a impossibilidade de estabilização de toda identidade. Para o pós-feminismo, toda identidade é normativa e excludente, porque no mesmo ato em que estabelece os limites que abarcam – enunciando aquilo que define – institui o excluído. O gênero não constitui uma essência; não é “natural”, nem pode ter pretensões de classificação universalizante. Os comportamentos teriam um poder constitutivo sobre nossos corpos; o gênero seria uma “posição” instável, atos de fala, uma performance auto produzida, um enunciado pré-formativo. Não cumprir com o “livreto” cultural que se nos impõe através da linguagem, nos privaria dos status de sujeito, nos excluiria das convenções hegemônicas que o poder institui, nos desumanizaria, nos transformaria em “o abjeto”. A heterossexualidade normativa poderia desafiar-se, portanto, desde as múltiplas formas paródicas do gênero e da sexualidade. As “imitações” do feminino e do masculino encarnadas no transgênero, na travesti, na transexual, transgrediriam as normas e estereótipos do gênero em seu fracasso ou instabilidade, convertendo-se em prática política subversiva. Ressignificar o discurso normativo, por meio da paródia, seria uma forma de política que socavaria a hegemonia e abriria novos horizontes de significados.
Enquanto o individualismo se impunha globalmente, da mão das políticas econômicas que empurrava a milhões ao desemprego, que estabelecia a fragmentação e o deslocamento da classe trabalhadora, o feminismo foi se distanciando cada vez mais de um projeto de emancipação coletiva, encerrando-se cada vez mais em um discurso solipsista, limitando a influenciar a uma elite que exigia seu direito a ser reconhecida em sua diversidade, tolerada e integrada na cultura do consumo.
A “cumplice oposição” do pós-feminismo
Se o feminismo da igualdade teve o mérito de conceituar o gênero como uma categoria social, relacional e vinculada ao conceito de poder, visibilizando que a situação de opressão das mulheres tem um caráter histórico e não é a consequência “natural” das diferenças anatômicas, o feminismo da diferença teve, por sua parte, a qualidade de resistir à assimilação a um sistema fundado na subordinação, discriminação e opressão de tudo o que difere do modelo “universal” forjado sob o domínio patriarcal. E se o feminismo da diferença caiu, facilmente, em um essencialismo biologicista, as teorias pós-feministas vieram questionar à sexualidade como uma invariável, voltando a conceber o desejo como algo situado. O mérito, neste caso, de rechaçar a ideia de que a diferença se transforme em identidade fixa, imóvel, abre um caminho potente na cultura e na construção de subjetividade, ainda que, mostra-se limitado ou impotente politicamente para a constituição de um movimento de luta pela emancipação do conjunto dos que são oprimidos pela heteronormatividade obrigatória.
Mas nem os graus de igualdade política conquistados nas democracias capitalistas dissolvem a desigualdade social, nem os padecimentos compartidos pelo pertencimento à mesma classe social dos explorados dissolve as desigualdades que geram a opressão das diferenças. Como imaginar uma igualdade que não equivalha ao reino do idêntico e uniforme, e uma diferença que não se constitua como identidade e hierarquia?
Longe de tomar uma posição sem ambiguidades pela igualdade, o marxismo propõe uma leitura materialista e dialética das diferenças: questiona a abstração metafísica da igualdade formal que aprisiona as diferenças concretas em um universalismo vazio. Porque, no capitalismo, a igualdade só pode existir formalmente, sob a força de abstrair os elementos particulares da existência social. O Estado capitalista consegue esse divórcio fetichista da política e da economia, oferecendo-nos o resultado de um ser humano escindido: proprietário ou despossuído, por um lado, ou seja, com diferenças; mas igualmente cidadão, por outro. As teorias pós-modernas, que pretendem que as diferenças sejam tão igualitariamente reconhecidas em sua especificidade ao ponto que se dissolvam como categorias identitárias (ou não tenhamos necessidade delas), referem ao excluído.
Mas ao não levar em conta as relações de produção capitalistas nas que apoiam estas exclusões, conclui em uma luta pela “inclusão” que, em vez de subverte-las, termina ajustando-se e sendo funcional à nova tolerância mercantil da diversidade. Sem assinalar a inextrincável relação que existe entre o modo de produção capitalista e as múltiplas fragmentações que coadunam à dominação, ao questionamento radical à estabilidade das identidades sexuais e da heteronormatividade perdem sua potencialidade subversiva. Daí que Terry Eagleton definiu o pós-modernismo como “politicamente opositor [no melhor dos casos], mas economicamente cumplice”(2).
A reivindicação da diferença enquanto tal ou a mera proclamação da eliminação das identidades binárias em um mundo onde tais diferenças são motivo fundante de brutais ofensas e injustiças, termina-se parecendo mais um discurso autocomplacente para uma pequena minoria ilustrada e progressista que à crítica de um movimento potente e radicalmente transformador. Pelo contrário, para o marxismo, trata-se da atenção igualitária das diversas necessidades: a única maneira na qual diferença não é hierarquia e a igualdade, uniformidade, algo que nenhuma “ampliação de cidadania” outorga pelas democracias capitalistas poderá oferecer (menos ainda em tempos de crise econômica, social e política como a que estamos atravessando). Só uma sociedade de livres produtores pode ser uma sociedade onde a igualdade se fundamente, não no atraso de uma medição despótica que busque ocultar as diferenças, senão no respeito igualitário das diferenças que estabelecem os elementos particulares da existência social.
Através dos olhos das mulheres
A crise econômica, social e política que atravessa o mundo, é o resultado da impotência do capitalismo para sobreviver senão às custas de maiores penúrias para as massas e maior degradação e esvaziamento político de seus regimes democráticos. O período da restauração conservadora, que desembocou nesta nova crise capitalista, deixou colocado um cenário contraditório: cooptação e integração de amplos setores das classes médias e de parte classes trabalhadora junto à exclusão – chegando à mais extrema marginalidade – para as mais amplas massas; fragmentação inusitada da classe trabalhadora, e ao mesmo tempo, da imposição do assalariamento para milhões de seres humanos empurrados às grandes urbes e de países inteiros incorporados ao mercado mundial.
Como assinalamos na primeira parte deste artigo, pela primeira vez na história da humanidade, este novo período de crise capitalista encontra uma força de trabalho altamente feminizada e com uma inserção urbana que supera à força de trabalho feminina no campo (3). Mas enquanto a situação mundial empurra as mulheres, e aos setores oprimidos, ao desenvolvimento de seu potencial subversivo – demonstrando em todos e cada um dos momentos históricos de grandes crises ou cataclismos sociais, econômicos e políticos -, o feminismo se encontra divorciado das massas, majoritariamente distante da perspectiva de um projeto emancipatório coletivo.
Recuperar essa perspectiva nos exige reconhecer que se a classe operária tem o poder (potencial) de jogar ao vento os propulsores da economia capitalista, essa posição estratégica não é razão suficiente para revolucionar a ordem dominante, se não conquista e acaudilha uma aliança com outras classes e setores oprimidos pelo capital, incluindo a unidade das fileiras proletárias altamente feminizadas. Levantar um programa para a liberação da mulher é vital para as grandes massas trabalhadoras, por sua própria composição e pela necessidade de estabelecer uma aliança com outros setores e camadas sociais empurradas a uma vida miserável, arruinadas pelo grande capital, mas também condenadas à discriminação e à marginalidade, a ser “o objeto” para uma cultura dominante que lhes nega o acolhimento.
Frente essa situação, grande parte das correntes de esquerda não tem feito mais que modelar-se ao status quo das últimas décadas de restauração conservadora. Partindo de uma visão cética, segundo a qual a derrota importa pela contra-ofensiva imperialista não poderia ser revertida, estabeleceu-se, como estratégia a última, a ampliação de direitos na democracia burguesa. Se as classes dominantes se viram obrigadas a incorporar estas demandas para desativar a radicalização, cooptar e integrar amplos setores no regime, estas correntes de esquerda ao invés de considerar estas conquistas como um ponto de apoio, estabeleceram-na como todo o horizonte último. Seu programa anticapitalista foi trocado por um programa antineoliberal, ou seja, com o objetivo mínimo defensivo de limitar os alcances mais pérfidos da restauração conservadora.
No polo oposto, para outras correntes de esquerda, desestimular a necessidade de um programa e uma política pela emancipação feminina que parta dos direitos democráticos conquistados, foi outra forma de adaptação: por omissão, os “assuntos” de opressão são deixados nas mãos dos movimentos sociais policlassistas, enquanto que se aprofunda o corporativismo e o sindicalismo no movimento operário. Em última instância, abandonar a estratégia de hegemonia proletária, pela via da abstenção sectária.
Pelo contrário, quem aqui escrevemos, consideramos que uma crítica desferida às misérias que engendra o capitalismo, também no terreno da subjetividade  e das relações interpessoais, tem que ser parte integral de nossa visão marxista do mundo, de nosso programa e nossa estratégia na luta por mudar radicalmente a sociedade de classes. Enquanto acompanhamos todas as lutas por arrancar do sistema capitalista as melhores condições de vida para milhões de pessoas submergidas na humilhação mais inimaginável, nosso objetivo é a conquista de uma sociedade sem Estado, sem classes sociais; uma sociedade liberada das cadeias da exploração e de todas as formas de opressão que hoje fazem do ser humano o “lobo” de seus congêneres.
Quem ansiamos a liberação da humanidade hoje sumida na miséria e na ignominia, não podemos senão nos posicionar desde o ponto de vista dos setores mais vulneráveis entre os explorados. Para transformar a vida desde a raiz tem que olha-la através dos olhos das mulheres, e é desde este ponto de vista, que tentamos retomar o método do bolchevismo para pensar, inclusive as profundas mudanças sociais que tiveram lugar no último século e que colocam novos problemas a serem levados em conta.
Sabemos que o comunismo não surge da mera ânsia, ainda inclusive quando se trata da ansiedade de uns milhares de milhões de explorados. É necessário não só desejar outra ordem de coisas, mas derrotar a ordem existente. Daqui a necessidade de que toda conquista parcial, hoje obtida nas estreitas margens das democracias degradadas, seja posta em função desta estratégia última.
É o único antídoto realista contra a utopia pós-feminista das democracias radicais e da distopia dos totalitarismos burocráticos com os que a revolução foi traída e convertida em seu contrário. Nesse caminho, o da luta das massas femininas por sua emancipação e a crítica marxista enriquecida pelos aportes das correntes feministas, surgirá um renovado feminismo socialista que ainda espera ver a luz.

Notas
(1) Manifiesto de Rivolta Femminile, Roma, julio de 1970.
(2) Terry Eagleton, Las ilusiones del posmodernismo, Buenos Aires, Paidós, 1998.
(3) Andrea D’Atri y Laura Lif, “La emancipación de las mujeres en tiempos de crisis mundial”, Ideas de Izquierda 1, Buenos Aires, julio 201

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